“Se você se lembra de alguma coisa da década de 1960 é porque não participou dela”. (Anônimo, citado por Eric Hobsbawn em Tempos Interessantes)
Os Sonhadores, do polêmico diretor italiano Bernardo Bertolucci, é uma obra-prima. Trata-se, assim como Os Intocáveis e Era uma vez no Oeste, de um filme sobre filmes. Seu trio de protagonistas, antes de serem maoístas ou libertinos, são cinéfilos. Cinéfilos altamente eruditos e sensíveis. E isto acontece por um motivo muito simples: a visão que os três possuem de cinema é tutelada por Bertolucci.
E se existe alguma coisa que Bertolucci entende é de cinema. O homem fez O Último Tango em Paris! Em Os Sonhadores, não há prova maior de sua competência do que a inteligente utilização de cenas clássicas comentando ou sublinhando sua própria ação. Dentre elas merece destaque a citação de Vênus Dourada, com Marlene Dietrich. Um primor! Num segundo nível de excelência está o uso das imagens dos personagens refletidas em pequenos espelhos, durante certos diálogos. Belíssimo! Achados estéticos que compensam largamente pontos falhos no enredo que poderiam ser facilmente driblados. O exemplo mais evidente talvez seja a reação naturalizada dos adultos de plantão do filme (os pais) diante da revelação da farra que, sem querer e depois querendo, patrocinaram. Um exagero lamentável, que não acrescentou nada ao enredo.
Os gêmeos “incestuosos” Isabelle e Theo, e seu amigo / amante americano Matthew, falam, sim, sobre política, como era moda entre os jovens burgueses da época, mas discutem muito mais seriamente sobre a sétima arte. Prova disto é que nas paredes do apartamento em que vivem suas “semanas e ½ de amor” os pôsteres do camarada Mao Tsé-tung perdem largamente em número e destaque para os de filmes antigos. As discussões sobre o Livro Vermelho ocorrem nos intervalos da verdadeira polêmica, o embate entre Theo e Matthew sobre quem é melhor: Buster Keaton ou Charles Chaplin. Enfim, em Os Sonhadores, os eventos de 1968 não representam mais do que um pano de fundo. Valorizam o enredo, enchem de significado as ações dos personagens, ajuda-os a “sonhar”, mas não é o principal. Poderia ser substituído com relativamente pouco prejuízo para a trama por outro momento histórico marcado pela efervescência política. O que realmente importa é a complexa relação entre os três jovens. Neste sentido é importante perceber que o desejo de transgredir os aproxima, a sede por intimidade os aproxima, o cinema os aproxima. A política os separa.
O que não significa que eles estivessem alheios ao que se passava a seu redor. Muito pelo contrário. Discutem política o tempo todo, assim como discutem arte, sexo, comida, dinheiro etc. São tipos multifacetados, nada estáticos. Ademais, o roteiro deixa claro que os gêmeos participavam de grupos estudantis de esquerda antes de ocorrerem os eventos narrados no filme. E, dois dentre os três, não hesitaram um segundo sequer em partir para a luta quando surgiu a oportunidade. A pedrada na janela não os despertou para a realidade das ruas, simplesmente deu-lhes a deixa para partir eles mesmos para a rua. Se fizeram e falaram tudo por mero capricho ou irresponsabilidade juvenil é um outro problema.
Talvez não fossem dos mais engajados, mas duvido muito que a maior parte dos estudantes que armaram as barricadas soubesse explicar com exatidão todos os conceitos do comunismo científico que juravam defender. Certamente, como acontece ainda hoje no movimento estudantil brasileiro, todos leram o Manifesto Comunista, trataram de decorar sua abertura e seu fechamento, mas sequer passaram das duas primeiras centenas de páginas de O Capital. A verdade é que em 68 ser comunista era uma moda tão importante socialmente entre os jovens quanto ser romântico no século XIX. A diferença é que os românticos se matavam, enquanto os comunistas queriam matar os burgueses.
No final dos anos 60 a revolução política estava intimamente ligada à revolução dos costumes. Ainda mais em Paris. Ali, fumar um baseado ou participar de uma orgia era encarado por muitos como um ato de contestação ao sistema. Não é por acaso que, segundo o historiador marxista Eric Hobsbawn, o que os estudantes parisienses mais pichavam nos muros da cidade era o slogan: “Jouissez sans entraves”, literalmente “que nada impeça o orgasmo”.
Também não é por acaso que Isabelle, Theo e Matthew se conheçam durante uma manifestação de protesto contra a demissão injustificada do diretor da cinemateca de Paris. Uma ação ao mesmo tempo de resistência cultural e política, que viria a ser o estopim das marchas. E também um evento social. Os queridinhos Godard e Truffaut certamente deram o ar de suas graças. Não é difícil imaginar que Brigitte Bardot estivesse perto deles, talvez levantando a saia em um ato de protesto. Provavelmente até mesmo o velho Sartre estava no meio da galera, entregando panfletos ao mesmo tempo em que caçava ninfetas, como era seu costume fazer. Uma festa. As porradas dos policiais, longe de representarem um estorvo, serviam para dar dramaticidade ao evento.
Neste ponto, antes que alguém se ponha manhosamente a reclamar de minha insensibilidade e desconhecimento da verdade, lembro-lhes do infame poema de Pasolini sobre a revolta estudantil de maio de 68. O cineasta e escritor, conhecido por sua pregação marxista, lembrou-nos que acontecia ali uma inversão de valores: o que se via era um bando de moleques burgueses jogando garrafas de coquetel molotov em trabalhadores proletários uniformizados para a labuta diária, os policiais. Na época, por conta deste poema, Pasolini foi duramente criticado nos círculos intelectuais de esquerda, mas é difícil negar que ele tinha sua parcela de razão. Em vista disto não deixa de ser interessante notar que, em Os Sonhadores, o personagem apresentado como sendo o mais positivo, Matthew, seja o único a se colocar radicalmente contra a violência. Mesmo quando seus dois cúmplices se entregam a ela em nome do que acreditam ser o bem maior. Por sua opção ética de fazer amor e não a guerra, Matthew, um proto-hippie, foi chamado de “calhorda americano” durante o debate. O que prova que a patrulha ideológica não mudou muito desde os tempos de Pasolini.
E assim como Pasolini, Bertolucci é uma figura emblemática da esquerda italiana. Não foi por acaso que ele se tornou o primeiro artista ocidental a conseguir permissão do governo chinês para filmar na Cidade Proibida, em 1987. O resultado foi o épico O Último Imperador, um filme claramente simpático ao regime de Pequim. Em Os Sonhadores, Bertolucci, seguindo o exemplo do companheiro Pasolini, não se deixou seduzir pela tentação de fazer um drama fácil. Ao contrário de ridicularizar ou criticar o maio de 68, como foi acusado de fazer, o diretor italiano humaniza-o. Deu cara, corpo e órgãos genitais a seus membros. Fez deles personagens profundos e complexos, distantes de frios e superficiais clichês. Não são heróis perfeitos ou arquétipos bidimensionais servindo como elementos pedagógicos em uma tragédia. Longe disto, são humanos, demasiadamente humanos. Com tudo o que isto tem de bom e de ruim.
E não são modelos atemporais. Encaixam-se em certos cenários, em outros não. Diferentemente do que muitos levantaram no debate, não podem ser de modo algum identificados com a juventude atual. Acreditar que o isolamento dos personagens em um apartamento espelha a situação apática da juventude contemporânea é um equivoco. Para entender isto basta observar o comportamento do trio. É impossível comparar o bacanal hedonista-sádico que meticulosamente organizam com o sexo “por não ter mais o que fazer” de Kids ou Ken Park. Na cama, na mesa e no banho lembram os aristocratas libertinos do Filosofia na Alcova, do marquês de Sade. São cínicos, articulados e cultos; diferentemente do grosso das pessoas de sua faixa etária de hoje, idiotizados que foram pela mídia de massa. Ou seja, o “papo cabeça” dos personagens é um valor específico de sua época, os anos 60, ficando deslocado na atualidade, onde seria tachado de “papo careta”. Neste início do século XXI, uma ínfima minoria dos jovens, mesmo dispondo da mágica tecnologia do DVD, se interessa em conhecer clássicos do cinema antigo ou mesmo o chamado cinema alternativo contemporâneo. Se vivessem hoje em dia, mantendo suas essências, Isabelle, Theo e Matthew seriam nerds deslocados e impopulares, não revolucionários de vanguarda. Talvez se tornassem piadas ambulantes, no melhor estilo Austin Powers. Nosso tempo pasteurizado e egoísta, onde uma etiqueta mostra quem você é ou deseja ser, não perdoa sofisticação intelectual em alguém que ainda tem espinhas. Jovens cultos representam uma minoria em extinção que deveria fundar uma ONG para tentar se proteger da barbárie reinante.
Em resumo, se a juventude de hoje fosse ao menos semelhante ao trio de sonhadores de Bertolucci, os sobreviventes da geração de 68 poderiam dormir tranqüilos: não teriam fracassado.