Edgar Franco, quadrinista, músico e professor, doutor em artes pela Universidade de São Paulo, fala sobre sua nova HQ.
***
Ademir Luiz: O álbum “BioCyberDrama Saga” é o resultado final de vários anos de trabalho. Como foi a concepção inicial do projeto? Como foi o processo de criação conjunta com Mozart Couto?
Edgar Franco: Tudo começou no ano 2000, quando eu ainda cursava o mestrado na Unicamp e criei um fanzine chamado “Biocyberdrame” (que foi publicado na íntegra nos anexos do álbum), eu tirei mais de uma centena de cópias desse fanzine e enviei a diversas pessoas, uma delas foi o mestre Mozart Couto, um artista que sempre admirei. Algum tempo depois Mozart me enviou um e-mail entusiasmado, dizendo que ficou instigado com o material e que poderíamos criar algo juntos, uma HQ com um roteiro mais tradicional, mas enfocando os mesmos temas do zine. Imagine a minha alegria ao receber um convite desses de um dos meus ídolos da adolescência! Eu já estava criando as bases de meu universo ficcional da “Aurora Pós-humana” e não perdi tempo, mergulhei na escrita da primeira parte de “BioCyberDrama Saga”, composta pelos 3 primeiros capítulos. Mozart desenhou, por prazer e nas horas vagas, esse primeiro tomo de 64 páginas que veio então a ser publicado pela editora Opera Graphica (SP) em 2003, com uma recepção muito positiva de crítica e público, recebendo indicações de melhor roteirista e melhor edição especial de 2003 no troféu HQMIX e Mozart ganhou o troféu Ângelo Agostini de melhor desenhista de 2003 pelo álbum. Quando escrevi o primeiro tomo eu já tinha o argumento geral para toda a saga, por isso nomeei o personagem principal de Antônio Euclides (referência direta a Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha), mas a viabilização dos outros tomos só seria possível a partir da recepção do primeiro, por isso fiz com que o tomo 1 tivesse vida própria. Com a boa recepção do álbum Mozart convidou-me a continuarmos a desenvolver a saga, lembrando que abraçamos o projeto sem nenhuma remuneração, pelo simples prazer de criar. Concluímos os dois tomos finais em 2009 e desde então procurávamos uma editora ideal para publicar o material com a qualidade que ele merecia, até que numa iniciativa inédita no Brasil a Editora da Universidade Federal de Goiás abraçou o projeto e o lançou exatamente como o tínhamos concebido. Incluindo a saga completa – o primeiro tomo e os dois tomos finais inéditos – a longa introdução que apresenta o universo ficcional e ainda anexos importantes, em um volume de 252 páginas.
AL: “BioCyberDrama Saga” é uma história em nove partes. Uma saga, como bem registraram na capa. Esse tipo de narrativa longa e cronológica não é comum em sua produção quadrinística, marcada pelos chamados “quadrinhos poético-filosóficos”, caracterizados por apresentarem uma ideia fechada em poucas páginas. Como construiu a narrativa do álbum? Sabemos que você dialoga com vários artistas conceituais em sua obra, mas, nesse caso específico, buscou inspiração em algum autor de HQ para montar a distribuição dos quadros e contar a história?
ED: Essa é uma observação muito sagaz. “BioCyberDrama Saga” foi um desafio para um artista acostumado a trabalhar HQs curtas e com forte teor experimental no traço e no texto – pois essa é a característica que marca minha obra. Um desafio muito prazeroso já que sou um amante de todas as formas narrativas das HQs e do cinema, mas procurei criar a saga sem nenhuma referência direta a alguma outra obra, simplesmente me propus a escrever uma longa narrativa na tradição das grandes narrativas e dar consistência aos personagens e ao universo em que eles estão inseridos. À época da criação do primeiro tomo, escrevi e desenvolvi sozinho a HQtrônica “Ariadne e o Labirinto Pós-humano”, outro trabalho de fôlego, com mais de 600 painéis desenhados, animações e som, que foi encartado em um CD-ROM no meu livro “HQtrônicas: Do Suporte Papel à Rede Internet”. A história de Ariadne se passa no mesmo universo e até cidade em que vive Antônio (personagem principal de “BioCyberDrama Saga”), e apesar de ser uma narrativa hipermídia, está muito mais conectada à tradição das narrativas, sem arroubos experimentais. Inclusive Ariadne aparece em “BioCyberDrama Saga”, Antônio a cumprimenta no elevador no primeiro tomo, uma marca da estrutura transmidiática de minhas obras recentes. Essas duas obras são, dentre as centenas de HQs que já fiz, as duas com narrativa mais tradicional. E foi muito prazeroso criá-las, pretendo desenvolver outras narrativas assim ainda, inclusive tenho o rascunho de uma nova saga.
AL: O estilo de Mozart Couto é clássico e limpo, primando pelo virtuosismo do traço. Com exceção de algumas rápidas passagens, ele não realizou muitos experimentos em termos de narrativa gráfica. De certa forma contrasta com a história contada, que é bastante complexa e inusitada. Essa foi uma opção estética consciente ou é mais fruto da escola narrativa do Mozart?
ED: Tive total confiança no domínio da narrativa quadrinística de Mozart Couto, para mim um dos maiores desenhistas de HQ do mundo ocidental. Descrevia as sequências, os diálogos e dava sugestões gerais, mas sempre lhe dei margem para fechar a estrutura das páginas e me adequei à visão narrativa de Mozart. Como conhecedor de sua obra, ao escrever a saga já sabia que era ele quem a desenharia, então levei isso em conta. Obviamente tenho meus arroubos poéticos experimentais – marca de minha obra – e Mozart topou os desafios de desenhá-los nos momentos em que eu os propunha e o fez com maestria. Mas a obra se insere na grande tradição narrativa dos quadrinhos ocidentais e isso foi intencional, uma tensão interessante entre a narrativa gráfica e o roteiro.
AL: Você é um artista cosmopolita. Atua e tem sua obra divulgada em várias partes do mundo. Chama atenção em “BioCyberDrama Saga” a aproximação que realiza com a cultura brasileira. O último ato da saga dialoga diretamente com a história da revolta de Canudos. O que motivou essa volta às origens?
ED: Dentre os episódios marcantes de nossa história, a saga de Conselheiro e do Arraial de Canudos sempre mexeu muito comigo. O livro de Euclides da Cunha é pungente e impressionante e narra uma história universal, a história de um mártir com ideias utópicas, paradoxais, repletas de certa inocência, mas também de uma visão densa do que é o humano. Conselheiro era um messias “naif”, mas de grande força interior. Não sou um narrador de historicismos, sou um ficcionista afeito a gêneros marginais como a fantasia, a ficção científica e o horror, esse é o meu território, mas a história de Canudos contém um conteúdo universal que muito me interessa, e de certa forma eu implodo qualquer romantismo que se criou em relação à figura de Conselheiro no mestre Antônio Resistente. Foi instigante recontextualizar nossa dita história e como criador trabalhar com a essência do que aquele episódio significa para mim, minha interpretação dele, já que acredito que a chamada história é tão ficcional quanto qualquer outra narrativa, é sempre desconstruída e reconstruída a partir dos olhares dos narradores.